Um ΓΊnico livro

Certa vez, um erudito resolveu fazer ironia comigo. Perguntou-me: "O que Γ© que vocΓͺ leu?". Respondi: "Dostoievski". Ele queria me atirar na cara os seus quarenta mil volumes. Insistiu: "Que mais?". E eu: Dostoievski". Teimou: "SΓ³?". Repeti: "Dostoievski". O sujeito, aturdido pelos seus quarenta mil volumes, nΓ£o entendeu nada. Mas eis o que eu queria dizer: pode-se viver para um ΓΊnico livro de Dostoievski. Ou uma ΓΊnica peΓ§a de Shakespeare. Ou um ΓΊnico poema nΓ£o sei de quem. O mesmo livro Γ© um na vΓ©spera e outro no dia seguinte. Pode haver um tΓ©dio na primeira leitura. Nada, porΓ©m, mais denso, mais fascinante, mais novo, mais abismal do que a releitura.

(Nelson Rodrigues, O Γ³bvio ululante).