Triolet: O contrário siamense

Foi difícil mas aletrei-me:

Que o vencedor nem sempre vence.

Que o gelado por vezes queime:

Foi difícil mas aletrei-me.

O contradito, ainda que teime,

Liba o contrário siamense.

Foi difícil mas aletrei-me:

Que o vencedor nem sempre vence.

Roundel: Ah, que fará o que chora?

Se os olhos já não fecham, sonolentos;

Se o corpo já cansado de dor treme;

Se a alma não encontra seus sustentos,

Ah, que fará o que chora?


Chafurda em pesadelos, e lá freme.

Como um saturno se demora em lentos,

Pejados andamentos, tudo preme.


É noite ainda... (e esses tais tormentos

Se estenderão na alma do que geme

Sob a luz, alvo de acorbertamentos),

Ah, que fará o que chora?

Quinteto: Calorão da porra

Ó dia calorento — e abafado! —,

Não sei mais o que faço pra refresco!

Estou todo suado, é tudo enfado.

É tudo esse desânimo safado.

Cansado estou: parado ou quando mexo.

Quintilha: Sombra

Uma sombra, de repente,

Cresceu e cobriu-me o peito,

E pensei não ter mais jeito.

Meu coração já não sente,

De toda luz eu suspeito.

O jabuti e o tolo

Um tolo exasperado, querendo tornar-se sábio, ouviu que tomar chá feito de língua de jabutim era expediente adequado. O jabuti, vendo-se cercado de um impostor malicioso, adiantou-se no falar:

—Amigo, que bom que estás aqui, assim podes me acudir. Queria muito conversar, mas minha língua aqui no casco eu perdi e a ela não consigo mais achar. Ponha aqui dentro a tua mão. Poderias me ajudar?

O tolo, enxergando a sua vez, precipitou-se em lançar a mão dentro do casco quelônio. O jabuti, mordeu e reteve a mão temerária até que o estulto pegasse no perpétuo sono.

 Dom extraordinário

Era extraordinário seu dom de ver as coisas exatamente como jamais foram.

  ***

Tope dos tolos

Porque almejava parte naquele tope, onde se equilibram os tolos, encheu a boca e passou às citas de renomados idiotas.

***

Sorriso

Tentou salvar o mundo com um sorriso. Acabou banguela.

***

Compatrício

Dois vocábulos só, e não compreenderam palavra nenhuma. Reconheceram um estrangeiro no compatrício.

***

Maldito livro

Foi visto saindo furioso de sua casa, dizendo: —  “Maldito livro! Nunca concorda comigo este maldito livro!”  —  Jogou um objeto no chão violentamente; voltou para o interior da casa batendo a porta atrás de si.

***

Sonhador

Foi encontrado morto em seu leito: despedaçado e esmagado sob seus próprios sonhos, que se acumularam sobre si  —  era apenas um sonhador.


Nota: coisinhas do passado, recém encontradas.

Tal como sala vazia,
Que coisa alguma a habitasse,
O meu coração jazia
Claustrófobo, inepto, triste.
Anulado no silêncio,
E já quase habituado
A sustentar, desde o início,
Apenas seu ar pesado.

Porém, passados os dias,
Como árida terra em água,
Bebo de alegrias pias;
Seca-se o poço de mágoa.
A ausência agora é presença.
Reto é o caminho da ponte
Que os pés, sob luz intensa,
Seguem. E nunca mais contes,
Coração, com os covardes,
Mendaces lados, que fogem
Cruzando os finais das tardes,
Qual loucos, morrendo à margem
Da Meia-noite. Silêncio,
Que eu ouço os passos de alguém:
Silentes, calmos e imensos,
Passos que já sei de quem.

Procurei mas fui achado:
Mistério a que não atinas.
E cá adentro o ar soprado
Acaricia as cortinas.

*Um poeminha antigo. Vai publicado aqui somente porque foi classificado num concurso literário.

Um campônio ante um juiz

Em certa noite, mas em hora incerta,
O pobre homem, já perdido o sono,
Demorava-se na janela aberta,
Mais amuado do que um cão sem dono.

Buscava um horizonte; errava a meta.
Ponderava no corpo um lasso tono,
Padecente de ação de classe experta
Que achaca por dinheiros ou pro bono.

O vultoso edifício o assustou;
Não sabia onde pôr o seu nariz.
“Minha língua é pesada…” — matutou.

Ao pôr-se então de pé ante o juiz,
Pigarreou, tossiu e enfim falou:
Peço vênia a Vossa Meretriz…

A Burrice e a Preguiça

O bifronte monstrengo,
O que em tudo me enguiça,
Paralisa-me o quengo
Dormitando-me insone —
Cada cabeça, um nome:
A Burrice e a Preguiça.

O baixo ventre no alto da cabeça


aos versejadores adeptos do spam.

Poetastro, se me tens misericórdia,
Poupa-me esses meus olhos da mixórdia,

A qual tomas por versos de poesia,
Versos de um intestino que esvazia

Seu conteúdo malcheiroso e fétido.
Terás assim — quem sabe? — algum crédito…

O baixo ventre no alto da cabeça
— Que todo assim as artes não exerça!

Falar em língua estrangeira

"Mas naquele momento eu estava no estrangeiro, e era obrigado a falar em língua estrangeira, o que sempre é incômodo e ligeiramente humilhante, pois como dizia aquele português, o Teixeira, não há nada mais hipócrita e constrangedor para um homem de bem do que chamar queijo de fromage ou cheese quando está vendo com toda clareza que no fundo aquilo é queijo mesmo."

(Rubem Braga, Fim da Aventura em Casablanca)

Quando nada mais resta

"Um pensamento me sacode. É a primeira vez na vida que experimento a verdade daquilo que tantos pensadores ressaltaram como a quintessência da sabedoria, por tantos poetas cantada: a verdade de que o amor é, de certa forma, o bem último e supremo que pode ser alcançado pela existência humana. Compreendo agora o sentido das coisas últimas e extremas que podem ser expressas em pensamento, poesia — e em fé humana: a redenção pelo amor e no amor! Passo a compreender que a pessoa, mesmo que nada mais lhe reste neste mundo, pode tornar-se bem-aventurada —ainda que somente por alguns momentos — entregando-se interiormente à imagem da pessoa amada. Na pior situação exterior que se possa imaginar, numa situação em que a pessoa não pode realizar-se através de alguma conquista, numa situação em que sua conquista pode consistir unicamente num sofrimento reto, num sofrimento de cabeça erguida, nesta situação a pessoa pode realizar-se na contemplação amorosa da imagem espiritual que ela porta dentro de si da pessoa amada. Pela primeira vez na vida entendo o que quer dizer: os anjos são bem-aventurados na perpétua contemplação, em amor, de uma glória infinita..."

(Viktor E. Frankl, Em busca de sentido)
 Têm a ciência, mas somente a ciência sujeita aos sentidos. Quanto ao mundo espiritual, a metade superior do ser humano, eles o rejeitam, o banem alegremente, mesmo com ódio. O mundo proclamou a liberdade, sobretudo nestes últimos anos, e o que ela representa? Nada além da escravidão e o suicídio. Porque o mundo diz: "Você tem necessidades, satisfaça-as, porque tem os mesmos direitos que os grandes e os ricos. Não tema satisfazê-las, aumente-as mesmo." É o que se ensina atualmente. Esta é a concepção deles de liberdade. E o que resulta desse direito de aumentar as necessidades? Entre os ricos, a solidão e o suicídio espiritual; entre os pobres, a inveja e o crime, porque conferiram-se direitos, mas ainda não se indicaram os meios de satisfazer as necessidades. (...); quanto aos pobres, a insatisfação das necessidades e a inveja são no momento afogadas na embriaguez. Mas em breve, em lugar de vinho, irão embriagar-se de sangue, é o fim para o qual os conduzem.

(Fiódor Dostoiévski, Os irmãos Karamázov, Livro VI, iii)

Saudade hipócrita

"Lembramo-nos, entretanto, com saudade hipócrita, dos felizes tempos; como se a mesma incerteza de hoje, sob outro aspecto, não nos houvesse perseguido outrora e não viesse de longe a enfiada das decepções que nos ultrajam."

(Raul Pompeia, O Ateneu, i) 

Brasil über alles


Não é mérito nenhum
Eu nascer brasileirinho.
Sendo ufano e coitadinho,
Todo dia é “sete-a-um”.

Palavrão

Eu me lembro da geração anterior. Havia uma cerimônia entre o brasileiro e o palavrão, havia como que uma solenidade recíproca. O palavrão tinha a sua hora certa e dramática. Vejo hoje meninas, senhoras, de boca suja, e nas melhores famílias. Diria, se me permitem, que o palavrão se instalou entre os usos mais amenos e familiares da cidade.

(Nelson Rodrigues, Hamlet nos bate a carteira.)

Um único livro

Certa vez, um erudito resolveu fazer ironia comigo. Perguntou-me: "O que é que você leu?". Respondi: "Dostoievski". Ele queria me atirar na cara os seus quarenta mil volumes. Insistiu: "Que mais?". E eu: Dostoievski". Teimou: "Só?". Repeti: "Dostoievski". O sujeito, aturdido pelos seus quarenta mil volumes, não entendeu nada. Mas eis o que eu queria dizer: pode-se viver para um único livro de Dostoievski. Ou uma única peça de Shakespeare. Ou um único poema não sei de quem. O mesmo livro é um na véspera e outro no dia seguinte. Pode haver um tédio na primeira leitura. Nada, porém, mais denso, mais fascinante, mais novo, mais abismal do que a releitura.

(Nelson Rodrigues, O óbvio ululante).